DosQueijos em entrevista

sexta, 09 março 2018 15:25 Escrito por 

Trocar a certeza pela paixão

A revista Negócios e Franchising publica, no seu n.º 114 (Dezemebro/Janeiro-2018), uma peça intitulada "Empreendedorismo. Mudar de vida depois dos 50". Aí refere que o empreendedorismo tem ganho um lugar de prioridade na agenda política europeia. Relacionado com a situação socioeconómica da Europa, este fenómeno criou nos últimos anos uma nova vaga de empreendedores 'seniores'. É sobre estes que se fala neste artigo. Três histórias de três portugueses que abandonaram longas e profícuas carreiras para criar um negócio próprio. Depois dos 50 anos.

Em 2009, 92,2% dos portugueses com 50 ou mais anos revelavam nunca ter pensado em empreender e eram poucos os que admitiam ter intenção de o fazer. Estes dados constam do 'Flash Eurobarometer Survey on Enterpreneur- ship', que definia, na data da análise, Portugal como um dos países com menor predisposição para o empreendedorismo sénior.
Indica ainda a peça que, em Portugal, o empreendedorismo sénior é "pouco planificado" e acontece "como fruto de oportunidades que surgem numa fase da vida" ou por "mudanças imprevistas no contexto da vida laboral". As histórias que lhe contamos não são de empreendedores 'forçados' a abraçar um negócio por falta de opções, mas sim de pessoas que não aceitam que a idade possa ser impedimento para cumprir sonhos e mudar.

DosQueijos foi um dos projectos em foco, numa entrevista conduzida pela jornalista Ana Rita Costa.

Texto da entrevista:

«Maria João Oliveira esteve ligada ao setor têxtil durante mais de 20 anos, mas é uma "queijófila" desde que se lembra. Engenheira Têxtil com experiência em algumas grandes empresas nacionais, Maria João era "uma funcionária muito bem paga", mas sem grande espaço para crescer na empresa onde trabalhava há já 12 anos. "Estava naquela fase em que se começa a equacionar muitas coisas. Comecei a pensar 'Ou mudo agora ou fico aqui para sempre'. É nesta fase que surge um convite para a direção de exportação de uma empresa agroalimentar. Uma empresa que produzia vinhos e queijos. Na altura fiquei entre a vontade de fazer coisas novas e a apreensão porque não sabia se teria conhecimento para fazer um bom trabalho nessa área", conta.

Em 2010, em plena crise financeira, Maria João Oliveira decide arriscar e entrar numa área que não era a sua, mas que a apaixonava. "Passados alguns meses percebi que a empresa tinha graves problemas financeiros. Comecei a ter períodos de 3 ou 4 meses sem vencimento. Não conseguia fazer o meu trabalho porque não havia dinheiro. Exportar exige investimento. Exige gastar antes para colher depois, e quando não se tem essa capacidade, fica difícil atingir esse objetivo..." "Conclui que era melhor chegar a acordo com a empresa e saí porque aquilo não tinha muito futuro. Eles queriam fazer um trabalho para o qual não tinham dinheiro na altura (...) Fiquei desempregada e foi a primeira vez que tomei contacto com esta realidade. Foi um bocado assustador." "Todos os dias ouvimos falar de um amigo ou de alguém da família que fica desempregado, e alguns dos quais sem ferramentas para fazer outras coisas, e tomamos consciência de que somos muito velhos para arranjar emprego, pelo menos como nós o conhecemos, e somos muito novos para nos reformarmos. De repente passo de uma situação muito confortável, para uma situação de incerteza. Era uma funcionária muito bem paga e até ficar desempregada nunca tive a necessidade de pensar em vencimento, o que também é um choque", revela.

Prestes a completar 50 anos, Maria João Oliveira percebeu que tinha uma oportunidade nas mãos. A experiência no setor agroalimentar ensinou-lhe que, para a grande maioria dos produtores, "o comércio tradicional não é muito contemplado. Querem trabalhar volume e com a grande distribuição, com todos os problemas que isso causa. Foi assim que eu percebi que aí havia trabalho para fazer, que havia espaço e isso abriu-me portas para o futuro, em termos do que viria a fazer a seguir."
O que veio a seguir foi a 'Dos Queijos', um negócio próprio em que Maria João Oliveira faz a ligação entre aqueles que querem comprar queijo e os que querem vender.

"Comecei a fazer contactos e foi engraçado, porque no início os produtores achavam muito estranho esta coisa de eu ter 'várias camisolas'. No fundo, o meu trabalho é defender todos os fornecedores que são meus clientes o melhor que sei e que posso, de formas diferentes, perante clientes diferentes, mas procuro fazer o trabalho comercial que uma grande parte destas empresas não tem", explica. "Há um potencial no comércio tradicional que se prende com questões como reputação e maiores margens. É preciso é outro conceito e uma abordagem de proximidade. Este tipo de clientes precisa de 'colinho'. Faz parte do meu trabalho falar com as pessoas. Saber que há alguém que vai ter um bebé e que não sei quem tem um filho já crescido. Criar estas relações faz parte do meu trabalho e é o que me distingue de outro tipo de 'vendedores'. Eu tenho que ter tempo para ouvir as pessoas, tenho que ter tempo para perguntar e de saber algumas coisas sobre os clientes que se calhar um vendedor mais convencional não sabe. Mas eu não sou funcionária de nenhuma das empresas com que trabalho: eu recebo um fee sobre aquilo que vendo." Outro dos choques chegou quando percebeu que "a [indústria] têxtil está muito mais desenvolvida e muito mais preparada do que a agroalimentar, mas eu como consumidora não tinha noção disso, porque todas as normas de segurança associadas à indústria me levavam a crer que esta era uma indústria muito preparada. Comecei com oito produtores e o que propus foi trabalhar numa lógica de parceria. Eu fazia o melhor que sei em termos de trabalho comercial e esses produtores, por sua vez, davam-me a confiança de facilitar a colocação de produto, de repensar a forma de fazer as coisas e perceber que eu não ia pedir paletes, mas duas caixas, que iam ter que mudar algumas coisas, porque uma caixa de um determinado queijo passou a ser uma caixa com dois queijos de uma variedade, dois de outra, etc, que são coisas para as quais a minha experiência na indústria têxtil foi uma mais-valia. Saí da indústria têxtil habituada a trabalhar com marcas como a Zara e a Salsa, com muita exigência e muito adaptada ao mercado, porque fazemos às bolinhas, mas se o cliente quiser quadrados nós também fazemos quadrados... Este é um conceito que se interioriza e quem trabalha 20 anos na indústria têxtil não tem dúvidas de que o cliente é que manda e orienta o caminho. Na indústria agroalimentar não temos esse conceito, pelo menos numa grande parte daqueles fornecedores com que eu trabalho. Também eles fizeram esse percurso comigo e começam a habituar-se..."

Para além disso, Maria João Oliveira confessa que a experiência de criar o seu próprio negócio foi um processo acompanhado de muito receio e de muita aprendizagem. "A abordagem dos primeiros fornecedores foi curiosa, porque as pessoas achavam muito engraçado o conceito, apesar de serem receosas. Havia a desconfiança na questão do pagamento. 'Quem é esta 'atiradora' que aparece por aqui?' Foi um processo de conhecimento e depois de vários meses e agora anos, acho que ambos os lados ganham. Eu hoje sei muito mais sobre queijos do que sabia. Acho que os produtores têm vantagens em trabalhar comigo, porque têm trabalho comercial especializado. Eu não sou uma vendedora, no sentido de trazer o catálogo com os produtos da empresa, oferecer e ir embora... Eu procuro trazer um pouco da história dos produtos, qualquer coisa que fique na memória..."

A Maria João 'Dos Queijos' tem como uma das suas missões dar a conhecer a diversidade de queijos que se produzem em Portugal, bem como a sua ligação à geografia, cultura e gastronomia. "Há inúmeras formas de pegar no queijo e se tivermos do outro lado pessoas interessadas sobre o tema é engraçado perceber como há avidez de conhecimento, porque as pessoas, e especialmente os portugueses, não têm uma cultura de queijo. Há muitos apreciadores de queijo em Portugal, mas essa cultura de queijo ainda é uma coisa um pouco insipiente. Nas zonas em que sempre se produziu queijo as pessoas consomem queijo e estão mais ligadas com a história do queijo, mas nos sítios onde a produção é recente isso não acontece", revela.

Hoje é ainda mais "apaixonada" pelo que faz, mas avançar para o desconhecido e criar um negócio próprio não foi uma decisão tomada de ânimo leve. "Eu gosto muito de saber onde piso e com esta mudança deixei de saber muitas vezes onde é que piso. De repente perdi autonomia financeira, perdi algum reconhecimento, porque eu trabalhava numa empresa há 12 anos e as pessoas reconheciam-me como conhecedora daquilo que fazia. De repente começo do zero num sítio onde as pessoas não me conhecem, não sabem quem sou, não tenho histórico e já não sou propriamente uma júnior. Já não posso usufruir do estatuto de júnior e de quem está a começar cheio de garra, mas não sabe nada. É um choque em muitos aspetos e para além disso eu sou uma pessoa de pessoas e de repente estar sozinha..." Essa sensação de choque supera-se, diz-nos, "com muita cautela". "Procuro não dar passos maiores do que as minhas pernas. Com isto percebi que sou uma pessoa com algum medo dos riscos e estou a aprender agora a correr riscos. Quando se trabalha para alguém, alguns dos riscos que se tomam no dia-a-dia são partilhados. Temos umas costas quentes e se as coisas correm bem partilhamos o sucesso e se correm mal também partilhamos a falha. Hoje tenho a vantagem de que quando corre muito bem ter um gozo incomensurável de perceber que foi tudo trabalho meu, e naturalmente, das pessoas que trabalham comigo, e isso é muito gratificante."

Aprender a gerir um negócio depois dos 50 anos já não a assusta. É que como conta Maria João Oliveira, "quando não há alternativas, avança-se. Às vezes perguntam-me porque é que não voltei para a indústria têxtil, uma vez que tinha tanta experiência. E é estranho porque eu nem sempre sei responder a essa questão. Mas eu gosto muito desta área e como é uma área em que há muito para fazer é quase criminoso deixar de o fazer. Para além disso, quando passo uma página para mim está mudada e voltar à indústria têxtil, com muita pena de algumas pessoas que investiram na minha formação, como o meu pai, seria andar para trás." Hoje, faz "competições" consigo própria. E apesar de achar que "é inevitável olhar para o passado e comparar, sobretudo nos dias maus", ver "a minha curva de evolução a crescer, sobretudo neste último ano, é muito bom." Essa curva de crescimento já lhe permitiu arrecadar 22 produtores nacionais para o seu portefólio e ajudá-los a criar uma estratégia comercial mais robusta e a adaptarem-se às exigências do mercado e dos clientes. "Foi preciso ajudá-los a perceber, por exemplo, que o cliente pode querer o queijo apresentado de uma forma diferente... Por outro lado, por exemplo, às vezes um restaurante quer quatro queijos amarelos da Beira Baixa, e é difícil para algumas empresas estar a mandar quatro queijos, porque as caixas são de seis, e os custos de transporte podem custar muito. Eu minimizo um pouco isso porque posso recebê-las e depois distribui-las eu, porque sei que alguns dos meus clientes querem, por exemplo, dois queijos amarelos da Beira Baixa, duas ou três fatias de queijo da Ilha das Flores, dois queijos de Azeitão...[risos]" Uma das áreas do seu negócio que gostava de ver mais desenvolvida é o trabalho que tem feito com produtores de vinhos e chefs nacionais. "Já fiz harmonizações com Vinhos Verdes e com queijos e são trabalhos muito interessantes, porque dar a conhecer queijos aos quais as pessoas não estão habituadas é outra forma de fazer chegar informação às pessoas. E pode ser um lugar-comum, o de as pessoas usarem as sinergias a seu favor, mas é interessante aliar produtos em momentos de consumo. No comércio tradicional e em lojas especializadas é também muito comum pedirem-me para fazer uma sessão de apresentação quando se introduz algum queijo. A presença de uma pessoa especializada, que aconselha, que fala do produto, que conta a sua história e cria ligações ajuda a que se venda mais."

"Outra vertente engraçada é trabalhar com chefs de cozinha: é um ritmo às vezes mais lento, mas percebo hoje que há uma grande falta de informação sobre queijos portugueses junto dos chefs. Os chefs trabalham de uma forma natural e de forma frequente com um queijo francês de cabra, porque trabalharam com ele quando estavam a ter formação, por exemplo, mas não conhecem tão bem os queijos nacionais, com exceção de um Terrincho, de um Azeitão ou um queijo da Serra", acrescenta. Para além disso, Maria João Oliveira vê com entusiasmo a possibilidade de começar a trabalhar com mercados internacionais. "Tenho vontade de chegar a alguns clientes estrangeiros. Tenho um cliente em Barcelona que ainda não está muito cimentado, mas uma das maiores dificuldades a esse nível é a logística. Gostava de trabalhar clientes espanhóis e, porque não, franceses...seria uma vitória [risos]."»

* Negócios e Franchising N.º 114 (Dezembro/Janeiro 2018)

 

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